Saturday, February 17, 2007

Do Dandismo ao Socialismo


DO DANDISMO AO SOCIALISMO

Rosângela Manhas MANTOLVANI (UNESP - ASSIS)
Este trabalho foi aprentado como conclusivo de Literatura Portuguesa
à disciplina da profa. dra. Rosane Gazola Alves Feitosa em 2002.

No final do século XIX, o contraste entre o norte de Portugal e a França é retratado por Eça de Queirós, expoente do Realismo lusitano, na obra A Cidade e as Serras, focalizando a relação amistosa entre um milionário francês, de origem portuguesa, Jacinto, e um português de Tormes, Zé Fernandes, o narrador irônico, personagem vez ou outra, principal.
Nascido em Tormes, Portugal, o avô e o pai do protagonista, ainda criança, transferiram-se para Paris, onde nasce o Jacinto da obra. O personagem de Eça é o terceiro de uma linhagem de Jacintos. Este, vindo a este mundo como Príncipe da Grã-Ventura, no 202 do Champs-Elisée, educado em Escolas Francesas e universidades como a Sorbonne, senhor de um gosto requintado, apaixonado pela tecnologia e civilização surgidas na mudança do século, dotado de um extremo senso de originalidade, é um perfeito dandy. Suas leituras demonstram uma preferência por Balzac, Musset e, num momento posterior, Schopenhauer. Sua vida reduz-se a uma fórmula algébrica, espécie de ironia do mecanicismo da vida humana nas grandes cidades da Europa: Suma Ciência x Suma Potência = Suma Felicidade, que ficou conhecida como “Equação Metafísica do Jacinto” de Odeon à Sorbonne.
Segundo José Castelo Branco Chaves 1 em sua análise da obra, o esforço estrénuo de Jacinto para conformar apertadamente a organização da sua vida à fórmula algébrica(...) dispondo erradamente, ou descurando, certas componentes essenciais da existência humana, pouco a pouco se transforma num martírio- que causa confusão e acaba em derrocada.
A obra de Eça surge como uma sátira à tecnologia, ridicularizando o excesso de maquinismo promovido pela Civilização na cidade de Paris, capital da inovação do mundo Ocidental naquele contexto. O grande avanço tecnológico da Cidade opõe-se ao primitivismo das Serras de Tormes, em Portugal, marcado na época pelo predomínio da atividade agro-pecuária e pelos processos artesanais de produção.
Na promoção dessa polêmica, Jacinto, que possui propriedades rurais em Tormes, vive em Paris, onde procura integrar-se ao cosmo financeiro e industrial, cercado por toda tecnologia de ponta disponível na época, utilizando, inclusive invenções com funcionalidade questionável no interior do 202, um mundo particular e original. O mundo singular de Jacinto, o Príncipe da Grã-Ventura, estabelece uma analogia com o do duque Jean des Esseintes, personagem da obra A Rebours ,de Huysmans2, em sua casa bem singular de Fontenay-aux-Roses, segundo procurou mostrar José Castelo Chaves3 quando declara que:
O requinte sofisticadíssimo da tebaida do anti-herói de Huysmans inspirou certamente a acumulação de instrumentos da hipercivilização parisiense no primeiro refúgio do 202 nos Campos Elíseos.
Des Esseintes é um dandy que, horrorizado à Civilização busca esconderijo em seu castelo de excentricidades. Jacinto, em oposição, convive com esta a ponto de enojar-se
.

Construído pelo olhar de Zé Fernandes, Jacinto tem a seu dispor, um manicuro exclusivo, bem como um elevador mecânico para transportar seus alimentos, além de todo luxo redundante, quase assustador de águas: oxigenadas, carbonatadas, fosfatadas, esterilizadas, de sais (...) e aparelhos mecânicos diversos, como telefone, gramofone, um telégrafo particular, entre outros. Estes e outros detalhes que o narrador traça sobre seu comportamento o estruturam como um dandy, que oferece festas como la soirée rosé.

Ora homodiegético, ora auto-diegético, Zé Fernandes é o narrador com profundo sendo de humor, que, em alguns momentos parece ter a pretensão de manipular com as escolhas da personagem principal. Seu discurso tem uma importante significância no cenário contemporâneo do século XXI, no sentido que vai de encontro aos anseios da grande massa de ecologistas que passeiam suas verdes bandeiras pelas ruas das capitais européias. Defensor do verde e da Natureza, Zé Fernandes faz apologia das grandes árvores e de todo cenário natural do Norte de Portugal, no qual acredita que deva inserir-se o homem para que tenha uma vida mais saudável e humanitária, em detrimento dos hábitos estressantes da grande cidade.
A estrutura da obra pode ser percebida como a representação, no material escrito, da distância que separa os objetos de sua antítese: a primeira parte refere-se quase que exclusivamente à Cidade, enquanto a segunda, às Serras. Há, entre elas, uma pequena fase intermediária destinada ao conflito interior e posterior conscientização do protagonista sobre seus profundos anseios. Há que se observar, no entanto, que a decisão de Jacinto em permanecer nas Serras está relacionada aos apelos do id humano4: alimentação natural, trabalho físico, tranqüilidade, acasalamento, reprodução, convívio com a natureza. É neste ponto que reside a atualidade da obra de Eça: o homem da cidade afasta-se de sua agitação, poluição e superficialidade das relações para buscar relações mais humanitárias, a nível físico e interpessoal.
Sobre essas relações, Baudelaire5 já se pronunciava em Fusées Suggestions, em que se perguntava:

(...) Que l’ homme enlace sa dupe sur le boulevard , au perce as proie dans des forêts inconnues, n’est-il pas l’homme éternel, c’est-à-dire l’animal de proie le plus parfait?

Parece bastante evidente que Eça de Queirós pretendeu estabelecer um confronto entre dois tipos de civilização, ao mesmo tempo em que exaltou dois princípios filosóficos, segundo a visão de José Castelo B.C. o epicurismo, exercido pelos tipos sociais na cidade-Luz, e o estoicismo, praticado na Serra. Para este crítico, Eça teria trabalhado numa relação analógica com a Ascenção às Colinas, através das quais Jacinto se espirutualizaria a cada ascenção que fizesse. Assim, alude aos discursos filosóficos atribuindo-lhes o clichê de Sermões.
Uma curiosa técnica pode ser percebida nos discursos de Zé Fernandes: ele se utiliza das ocorrências narradas a respeito da Cidade para criticar o provincianismo de idéias e o atraso das mentalidades, conquanto no ato de narrar sobre as Serras, critica o superficialismo das convenções e das normas da Civilização.
Sua crítica recai sobre algumas instituições, provavelmente responsáveis pelo atraso tecnológico de Portugal, especialmente os resquícios religiosos ainda recorrentes da Idade Média. Para tecer essa crítica, utiliza-se da voz de Jacinto, personagem-símbolo da ciência : (...) A religião! A religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror (...) (p.19).

O papel exercido pelo narrador nessa obra de Eça é muito interessante pois, em muitos momentos, este desloca a cena unicamente para si, como se observa no capítulo XVI, quando este parte para Paris e passeia por todo universo jacíntico, incluindo o 202. Nessa oportunidade, exerce, através da voz da personagem Conde de Marizac, uma crítica ainda mais severa a alguns aspectos da Cidade Luz, bem como a seus tipos:
(...) Dornan, o poeta, a obscenidade, a preciosidade dos versos (...); o Psicólogo, com suas feminices a três francos e cinqüenta (...).
Paris causava uma estranha sensação de monotonia, por causa dos fatos e idéias repetitivas, na mediocridade discreta e ordeira (...); Os casais, todos da mesma cor pardacenta (...)
(p.181).
(...) me cansava o [Paris] perceber a tenaz incessância do trabalho latente, a devorante canseira do lucro (...) entre a indiferença e a pressa da Cidade.
Critica o visual da cidade: as magras árvores, as grossas tabuletas, os imensos chapéus emplumados sobre tranças pintadas de amarelo, e os garotos oferecendo baralhos de cartas obscenas, caixas de fósforos obscenas
. (p.181).
Imagens estas que o narrador procura associar ao som: aquele estridente rolar da cidade, numa tentativa de filmar Paris na imaginação do leitor. Tece observações sobre as imagens promovidas pela mídia:

A mesa do quiosque(...) alastrada de jornais ilustrados – e em todos se repetia a mesma mulher, sempre nua (...) ora mostrando as costelas magras, de gata faminta, ora voltando para o leitor duas tremendas nádegas. Assim, busca analisar o jornal: (...) abri a Voz de Paris (...) na primeira coluna (...) uma princesa nua e um Capitão de Dragões(...) as outras colunas contavam feitos de cocottes (...). Na outra página escritores celebravam vinhos digestivos e tônicos (...), os crimes de costume (...) nada de novo! (p.182).

Ironiza, ainda, a polidez da civilização, mostrando como a comida era cara e o dinheiro falso circulava entre as notas oficiais.
No sonho, como representando um verdadeiro pesadelo da Civilização, esta invade a Serra:

(...) sonhei que em Tormes se construíra uma Torre Eiffel e que em volta dela as Senhoras da Serra, as mais respeitáveis, a própria tia Albergaria, dançavam nuas, agitando no ar saca-rolhas imensos. (p.181).

É nesse contexto de sonho que a sátira se estabelece. Essa cena resultaria uma bela tela surrealista.
Critica o contexto social, imprimindo uma linguagem depreciativa e vulgar:

Dois impulsos únicos correspondendo a duas funções únicas, parecia estarem vivos naquela multidão: o lucro e o gozo. Os dois apetites da cidade – encher a bolsa, saciar a carne! (...). Fala dos perigos da cidade: (...) de cada ponto parecia sair um ardil para me roubar(...) supeitava um bandido em manobra; (...) as mulheres (...) só podridão por dentro. (p.183)

Analisa as formas da multidão, na sua pressa, nas atitudes, de forma pejorativa.
Nas serras, seu discurso enfatizava o belo, a Natureza e sua construção privilegiada, como uma espécie de louvor:

Com que brilho e inspiração a compusera o divino Artista que fez as serras e que tanto as cuidou e tão ricamente as dotou neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça (...). Dos pendores sobranceiros ao carreiro fogoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável (...) (p. 106).

A linguagem utilizada para descrever e vivificar as serra é absolutamente poética, repleta de construções inusitadas. Em muitos momentos da narrativa é possível observar uma intersecção entre cenário, fato, linguagem.
A antítese geográfica e social reflete-se no comportamento da personagem, revelando dois aspectos diferenciados do seu eu: em Paris, Jacinto assume a excentricidade e o refinamento dos gostos e maneiras na figura do dandy; em Tormes, o interesse pelo trabalho e produção, pelos humildes e suas vidas na figura do fidalgo humanistarista.
A dialética estabelecida no contexto espelha a contradição interior do mesmo homem. Os espaços, assim, aparecem como reflexos de duas perspectivas internas do protagonista: o místico, natural, atrelado à terra e às atividades do setor primário, influenciado por leituras clássicas e funcionais; e, o outro: o superficial, o produzido pelas normas e etiquetas, ligado ao mundo financeiro e artístico, cercado de ciência e novas filosofias.
A obra A cidade e as Serras implica um retorno do homem às origens, uma espécie de caminho inverso àquele priorizado no contexto da época, cujo percurso seguia em direção à Cidade. Os países europeus importavam de Paris desde idéias até soutiens.
Reformando a casa dos trabalhadores de suas propriedades, bem como suas condições materiais de vida, Jacinto tem atitudes incompreensíveis aos habitantes de Tormes. Interrogado por Tia Albergaria sobre seu procedimento, Jacinto justifica seu comportamento, revelando: (...) sou socialista.

Dandy ou socialista? Conhecido por suas tendências socialistas, Eça de Queirós faz transparecer sua marca pessoal na construção da personagem Jacinto, que se mescla a outras marcas, num jogo dialético sob o qual se organiza essa obra que nos apresenta discursos nos quais a ideologia estabelece jogos de forças absolutamente atuais e discute, no sub--nível questões como socialismo, capitalismo, hipercivilização, ecologia e, especialmente, o homem.

RESUMO:

DO DANDISMO AO SOCIALISMO trata de uma abordagem à obra A cidade e as Serras, de Eça de Queirós, enfatizando a crítica que Eça desenvolve sobre a hipercivilização e as relações que os homens mantém dentro dela, bem como aquelas que representam seu ponto de oposição, ou seja, o espaço das relações primeiras, as Serras. É nessa relação dialética que o narrador da obra constrói implicitamente, discursos que remetem tanto à estética decadentista do final do século quanto ao socialismo, doutrina econômico-política-social, surgida pouco tempo antes. Nesse contexto estético, filosófico e ideológico passeiam as figuras do Príncipe da Grã-Ventura, Jacinto e seu amigo português, Zé Fernandes.

PALAVRAS-CHAVE: Espaço; Civilização; Dialética; Comportamento; Ideologia.

BIBLIOGRAFIA

CANDIDO, Antônio.“Entre campo e cidade”. In: Tese e Antítese. 3ª ed. São Paulo: Nacional, 1978, (p. 31-56).

CHAVES, José Castelo Branco. A cidade e as serras. In: Suplemento ao dicionário de Eça de Queirós .(org. e coord. de Matos A Campos). Lisboa: Caminho, 2000, (p. 91-100)

COELHO, Jacinto do Prado A . A letra e o leitor. Lisboa: Portugalia, 1981, (p.169-174).

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através de textos. 25ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997, (p. 361-7).

1 (apud.) MATOS, A. Campos. (org. e coord.). Suplementos ao dicionário de Eça de Queirós. Lisboa: Caminho, 2000.
2 Huysmans, J. A Rebours, Paris
3 (apud. id.ibid.),2000, p.100

5 BAUDELAIRE, J.J.. Le Fleurs de Mal. Paris: (...)

Wednesday, January 24, 2007

L�ngua e Literatura

Saturday, January 20, 2007

Eça e a Face do Dândi

EÇA E A FACE DO DÂNDI:
Um outro olhar sobre A Correspondência de Fradique Mendes

MANTOLVANI, Rosangela Manhas

A Correspondência de Fradique Mendes, cujas cartas que compõem parte da obra foram publicadas a partir de 23 de maio de 1888 - quando Eça entrega a Oliveira Martins, por meio de carta, os primeiros escritos publicados no jornal "O Repórter", de Lisboa - aparece como uma reconstrução original em que o protagonista se resume na recuperação de uma personagem criada no tempo do Cenáculo de Lisboa. Diz Eça na carta mencionada:

Se bem te recordas dele, Fradique no nosso tempo, era um pouco cômico. Este novo Fradique que eu revelo é diferente -verdadeiro grande homem, pensador original, temperamento inclinado às accões fortes, alma requintada e sensível... Enfim, o diabo! (Queirós, 1888)

No primeiro momento em que a personagem surge, trata-se do autor de "Lapidárias", um poeta satânico, surgido nas páginas de "A Revolução de Setembro", como criação coletiva - um pseudônimo cômico - de Eça de Queirós, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, entre 1868 e 1869.
Com esse mesmo espírito de poeta, a personagem aparece em O mistério da estrada de Sintra, romance publicado em folhetins - escrito por Eça e Ramalho Ortigão - no "Diário de Notícias" -, e editado logo em livro, em 1870.
A publicação desse romance - O mistério da estrada de Sintra - em 1885, então praticamente refeito, parece ser o fio que conduziu Eça à idéia de "reestruturar" a interessante personagem.
Este terceiro momento da personagem acontece quando seu criador decide reunir as Cartas publicadas em datas diversas nos jornais e revistas - a exemplo do jornal "O Repórter", de Lisboa, e da "Gazeta de Notícias", do Rio de Janeiro e, ainda, da "Revista de Portugal" e "A Ilustração"-, assinadas pelo pseudônimo de Fradique Mendes; Eça "emenda-lhes", então, uma "Memória", na qual trata brevemente da pseudo-biografia da personagem e, reunindo os gêneros - narrativa e missivas -, a intitula Correspondência de Fradique Mendes, publicada em livro postumamente, cuja primeira edição saiu em 1900, pela Livraria Chardon, de Lello & Irmão, revista por Júlio Brandão.
Para a utilização do nome de Fradique como autor das cartas, Eça tratou de recuperar a personagem do esquecimento, "reconstruindo[-a] e assumindo[-a] como criatura sua" (Peixinho, 2002, p. 340), para publicar idéias que um "outro-Eça" pretendia divulgar.
As Cartas d'A Correspondência de Fradique Mendes apresentam uma técnica narrativa particular que remete a uma analogia com o estilo das crônicas de época, em que o tom irônico prevalece e recobre, muitas vezes, a intenção primeira do trabalho, resultante de um projeto desenvolvido por Eça na década de 80 do século XIX, em que os aspectos do moderno se imiscuem em sua escrita, cujo momento fundamental se concentra na recriação desse duplo: Fradique.
A construção d'A Correspondência de Fradique Mendes se organiza em duas partes: "Memórias e Notas" - composta por oito mini-capítulos e numerados I, II, III, IV (...) - e as "Cartas" - destinadas tanto a personagens construídas quanto a personalidades da época: o Visconde de A. T. (I); Madame de Jouarre, madrinha de Fradique (II, VII, X, XII, XIV); Oliveira Martins (III); Madame S. (IV); Guerra Junqueiro (V); Ramalho Ortigão (VI); Clara, inicialmente amiga, namorada, ex-namorada (IX, XIII, XVI, XVII); Mr. Bertrand B. (XI); Bento de S. (XV); Eduardo Prado (XVIII); um total de onze destinatários - inclusas aqui as cartas publicadas em Últimas Cartas -; enquanto os endereços de postagem são os mais diversos possíveis: Londres, Paris, Lisboa, Quinta de Refeldes (Minho), este último, fictício.
Nas "Memórias e Notas", encontram-se, entre outros conteúdos, referências ao aparecimento de Fradique como poeta das "Lapidárias" e toda uma "biografia" que o estrutura como um homem de seu tempo. A voz autoral - um narrador anônimo em primeira pessoa - trata de narrar seus contatos com o protagonista, destacando inicialmente seus defeitos, de forma irônica e, posteriormente, fazendo cintilar suas inúmeras qualidades, ressaltando sempre a sua faceta de dândi e seu perfil requintado e ilustrado.
Tendo conhecido Fradique em 1867, o narrador das "Memórias" teria se tornado mais íntimo do autor da Cartas em 1880, quando regressara da África Austral. O narrador faz referências ao Cenáculo, do qual a pseudo-personagem teria feito parte - uma forma de alusão ao círculo de convivência de Eça - e, quando o encontra (em 1867) no Café Martinho, deparando-se com os poemas da personagem publicados no jornal "A Revolução de Setembro" (Queirós, s/d, p. 983) sob o título de "Lapidárias", cuja originalidade teria despertado a atenção do narrador.
O caráter metalingüístico do primeiro capítulo das "Memórias" é bastante evidente, bem como a crítica sutil a uma certa produção poética em Portugal, uma monótona e interminável confidência de glórias e martírios de amor. (Idem, p. 983)
A estética dos movimentos literários de fin-de-siècle também são avaliados rapidamente pelo gosto do narrador, por meio dos poemas de Fradique Mendes, cujo conteúdo de motivos de esplêndido simbolismo (Queirós, s/d, p. 984), se acha entrecortado por um quadro de singela modernidade" (Id. ibid., 984), cuja ênfase do poema não se encontrava na Idéia, mas na Forma - uma forma soberba de plasticidade e de vida, que (...) me lembrava o verso marmóreo de Leconte de Lisle (...) e a nervosidade intensa de Baudelaire, vibrando com mais norma e cadência. (...) (Queirós, s/d, p. 984)
Assim a apologia da Forma é reiterada posteriormente: a forma, a beleza inédita e rara da Forma, eis realmente nesses tempos de delicado sensualismo, todo meu interesse e meu cuidado (Idem, p. 986)
Do Simbolismo salpicado de modernidade de 1867, revelado em "Lapidárias", ao segundo momento de produção textual da personagem - as Cartas - há um salto estilístico, uma vez que estas sintetizam um estilo de "fin-de-siècle" na França, em que o "fetichismo do objeto" e da imagem se revelam em diferentes momentos nas epístolas, principalmente nas cartas destinadas a Madame de Jouarre, ou naquela endereçada ao Visconde de A. T., quando os detalhes e os pequenos objetos dominam o conteúdo, acrescidos de uma superficialidade e futilidade luxuosa características da art-nouveau.
Fradique é visto pelo narrador sob dois aspectos: o mito reconhecido socialmente como representante de uma geração interessada na tour du monde, excêntrica e exibicionista, e culmina com a visão do dândi, altamente intelectualizado e capaz de criticar jocosamente, resumindo-se no português mais interessante do século XIX.(Queirós, s/d, p.988)
O narrador de Fradique é também o editor das Cartas, que justifica sua publicação:

trata-se, como desde logo deduzes, de fazer para Fradique (não sei se te lembras deste velho amigo) o que está em moda fazer a todos os grandes homens que morrem - publicar-lhes as cartas particulares. Fradique foi um grande homem inédito. Eu revelo-o a seus concidadãos, publicando-lhe a correspondência. Uma forma de fixar os vestígios da formidável atividade de seu ser pensante. (Queirós, s/d, p. 989)

Uma das perguntas que se têm feito alguns estudiosos do texto é: quem é esse narrador, amigo de J. Teixeira de Azevedo e Marcos Vidigal, ex-estudante de Coimbra do tempo do Cenáculo? Um parceiro de Eça ou ele próprio, seu "outro"? Basta resumir que se tratava de um idealista e democrata de 1867.
Quanto ao protagonista, seria descendente do navegador D. Lopo Mendes, nascido de uma rica família dos Açores. Órfão de pai e mãe, ficou sob a tutela da avó materna. Submetido a uma educação eclética, que incluiu um capelão, um coronel francês, jacobino, e, ainda, um alemão que se dizia parente de Kant. Desta forma, misto de diferentes formações, seguiu para Coimbra, onde cursou Humanidades. Com a morte da avó, restou-lhe o tio Tadeu Mendes, que residia em Paris. Para lá dirigiu-se Carlos Fradique estudar direito nas cervejarias que cercam a Sorbonne. (Queirós, s/d, p. 988). Após receber a herança do pai e da avó (cerca de um milhão de cruzados), saíra do Quartier Latin, viajando por todo o mundo. Íntimo de Garibaldi, Mazzini e Victor Hugo, era também o eleito da famosa cortesã Ana de León.
Seu aspecto de dândi se concentra na esplêndida solidez, [n]a sã e viril proporção dos membros rijos, no aspecto calmo de poderosa estabilidade, nos largos sapatos de verniz, nas polainas de linho, na face pura e fina, na pele de brancura láctea e fresca, no buço crespo e leve [que] orlava os lábios, estes talhados de uma vermelhidão húmida para a Ironia e para o Amor. (Queirós, s/d, p. 991-992). E ainda, em outros detalhes como a quinzena solta, de fazenda preta e macia, as calças sem vinco, o colete de linho branco com botões de coral, o laço da gravata de cetim negro, e os colarinhos quebrados são outros detalhes que indicam o seu tipo social, o dândi, em quem se surpreendiam (...) vinte séculos de literatura. (Idem, 992)
O ambiente de seu quarto, a decoração exótica, o criado inglês, enfim, seu estilo de vida indicavam o status de homem fino e requintado de passagem por Lisboa. Suas opiniões sobre a poesia francesa, bem como a comparação entre Baudelaire e Boileau causam uma primeira impressão negativa no narrador das Memórias, que chega a classificar Fradique como "pedante" (Id. ibid., p. 996), o que não o impede de perceber o que há de novo, de absolutamente original em suas idéias.
Passados anos, o narrador reencontra Fradique no Cairo, nos jardins de Ezbekieh e, a partir desse momento o leitor entrará em contato com a "outra" visão sobre o autor das cartas.
É no contato com o protagonista que o narrador homodiegético trata de reformular o novo olhar que deitará doravante sobre o protagonista: o intelectual irônico e excêntrico e sua forma particular de observar o mundo: das ironias referentes às vestimentas da época (Queirós, s/d, p. 1042) à crítica política que tece sobre o Brasil (Idem, p. 1106-1109), é possível observar o ritmo crescente de profundidade do personagem que, inicialmente, aparece como superficial e fútil, dado o excesso de luxo e requinte, as maneiras estudadas de manipular os objetos, a serenidade quase perturbadora. Sua erudição e profunda formação humana percorrem as páginas: falava inglês, francês e alemão, além do árabe e do português. (Queirós, s/d, p. 1018)
Nas cartas, Fradique destaca seu horror pelos políticos incultos, seu amor pelo pitoresco e pelos animais e, especialmente, pela mulher (Idem, p. 1022-1026). A última, considerava-as como organismos superiores, divinos, sem, no entanto, deixar de selecioná-las, de acordo com as convenções da época em "mulher do exterior" (flor de luxo e mundanismo) e "de interior" (as que guardam o lar). (Id. ibid., p. 1027)
Seu perfil como entidade autêntica torna-se, então, ao contrário do que se pretende, precário e duvidoso, justamente pelo excesso de qualidades que lhe é atribuído, de acordo com os estudos de Piedade (2002, p. 297)
Quanto aos seus escritos, consta que haviam ficado aos cuidados de Mme. Varia Lobrinska - tratada Libuska pelo protagonista - , uma russa. O narrador, após ler as cartas de Fradique, decide publicá-las, considerando-as um estudo excelente de psicologia e história. (Queirós, s/d, p.1037), além de lançar o amigo no mundo da publicidade.
Entre as memórias do narrador e as idéias discutidas das Cartas, instaura-se o conceito de polifonia romanesca (Piedade, 2002, p. 296) quando um conjunto determinado de idéias, de reflexões, de palavras, são distribuídas entre várias vozes distintas com um totalidade diferente em cada uma delas1. (Bakhtin, 1970, p. 342)
Diferentes pontos de vista se mesclam, se complementam e, por vezes se mostram contraditórios, de forma a questionar a credibilidade de certos conceitos e idéias veiculados tanto pela voz do narrador, a de Fradique e as das diversas figuras, cujos pontos-de-vista, vez ou outra, confrontam as informações do narrador, provocando uma omnipotente atmosfera de ambigüidade. (Piedade, 2002, p. 296)
Ao discutir as questões relativas a autor-implícito, autor-implicado e narrador, Ana Nascimento Piedade (2002, p. 301-304), adota as posições de Gérard Genette para o caso, e conclui que as referidas distinções entre autor-real, autor-implicito e narrador, não implicam que não possam existir afinidades ou semelhanças de vária ordem entre todos eles. Este (...) é o caso de A Correspondência de Fradique Mendes.(Piedade, 2002, p. 304)
Quanto às relações entre o narrador e o autor-real há indícios de que os eventos e fatos da narrativa, como a participação no Cenáculo, a viagem ao Egito, a alusão a amigos do romancista (A. de Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, etc.), favorecem uma resistência à separação entre o narrador d'A Correspondência e seu autor, dada certas coincidências biográficas. Após discutir essa questão, conclui Piedade que uma identificação entre o narrador e o Eça-real e, por extensão este e o alter-ego de Fradique, permanece problemática não só porque ambos provém de diferentes níveis ônticos, mas sobretudo devido à incessante estratégia de distanciamento irônico que perpassa a obra e que consubstancia exemplarmente na silenciosa atuação do autor implícito (Piedade, 2002, p. 305), entidade que não coincide exatamente com o autor-real nem se confunde com a voz do narrador.
Ela trata de revelar de forma clara os eventos que marcam o distanciamento cômico entre o Eça-real e o narrador, exemplificando com fragmentos textuais que o excesso de exaltação à figura de Fradique, vez ou outra, é exposta a contradições, em que desconcertantes comentários do narrador ou de outras figuras o depreciam de forma jocosa, revelando incongruências.
É possível, então, concluir que há, sim, uma separação entre a personagem e o autor-real, não se tratando de um "outro", a menos que este outro tratasse das ironias que o próprio autor gostaria de outorgar a si mesmo. Ao contrário, parece muito provável que as ironias dirijam-se aos novos cronistas de fin-de-siècle, talhados ao estilo de Jean de Paris, por exemplo, envolvidos no estilo superficial da art-nouveau.
Quanto ao conteúdo das cartas, estas trazem elementos das viagens do protagonista em seu tour-de-monde - um hábito dos filhos de famílias abastadas da época - com impressões muitas vezes detalhadas sobre África, Ásia, e até o Brasil. Sua crítica às religiões de forma geral, passa pela comparação de Buda ao frade mendicante, como forma de ironizar tanto a relação da religião com o homem no Oriente como no Ocidente, destacando a forma de controle emocional exercido pelas religiões. O tom jocoso sobre a comunicação de algumas sociedades africanas com seus deuses e antepassados não deixa escapar a ironia sobre essa relação também naquele continente. (Queirós, s/d, p. 1055)
Em uma das cartas critica o atraso nas relações comerciais (ainda provincianas) em Portugal, bem como certas figuras consideradas ilustres no país, construídas como mitos quando, na verdade, não passam de elementos dispensáveis em qualquer sociedade séria, a exemplo do Pacheco, homem público, um dos baluartes do atraso da nação portuguesa; crítica essa tecida com profunda jocosidade, além do Quinzinho, rapaz que já possui uma vaga no serviço público, via tráfico de influência, mesmo sendo incapaz de concluir com aproveitamento os estudos fundamentais. Critica, ainda, capitalistas como o Pinho Brasileiro, homem desocupado, cujas benesses das dívidas estaduais proporcionam privilégios inaceitáveis a este tipo habituado a viver de rendas.
É por meio das cartas que Fradique trata de assuntos de sua contemporaneidade, enquanto nelas se destaca um certo tom de crônica, em que desfilam algumas teorias vigentes na época - muitas vezes ironizadas - além de uma crítica bem humorada, de forma a revelar a multifaceta social de Fradique: (...) bem se pode dizer que foi o devoto de todas as religiões, o partidário de todos os partidos, o discípulo de todas as filosofias, não o diletantismo. (Queirós, s/d, p. 1016)
É essa posição do narrador - irônica - que, muitas vezes, estabelece uma contradição com o conteúdo das cartas, a exemplo da citação acima e o exposto por Fradique sobre as religiões na Carta a Guerra Junqueiro ou da crítica que tece sobre as funções executadas por Padre Salgueiro, chegando a considerá-lo um amanuense de Jesus, não o integrante de uma Igreja, mas da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos (Idem, p. 1091), que instala paradoxos inconciliáveis entre a voz do narrador e a produção epistolar de Fradique.
O conteúdo que se encontra "entre" o discurso do narrador e o das cartas institui um intervalo em que somente a instância da ironia e do "não-dito" pode justificar o projeto de Eça em construir uma personagem tão contraditória, seja por seu percurso como escritor, transitando por diferentes movimentos: poeta simbolista, autor de cartas sobrecarregadas de humor em estilo art-nouveau, povoadas de críticas sociais e políticas, seja por seu perfil eclético, construído entre o jovem aventureiro e o intelectual profundamente reflexivo, com excessivo número de qualidades, sob a ótica do narrador "encantado".
E, nem a imprensa da época escapa à voz deste crítico feroz, uma vez que ironiza as polêmicas que o jornal provoca, obrigando os leitores a ajuizar sobre os fatos cotidianos, enquanto esclarece o papel ambíguo do jornal em informar e formar opiniões por meio da imparcialidade enganosa. Embora revele todas as artimanhas do jornal e seu papel dúbio na sociedade, trata de deixar claro que os lê (a vários) diariamente e de forma prazerosa. Ironicamente comentado, o jornal é criticado, porém aparece como algo que a personagem aprecia, uma outra forma de contradição e ironia, pela forma como é apresentado.
Assim, A Correspondência de Fradique Mendes se constrói no espaço "entre" a realidade e a ficção, separadas por uma linha tênue, que permite a imersão de um plano em outro e vice-versa, enquanto o intratexto apresenta contradições e incongruências, estabelecendo paradoxos que só podem ser lidos no espaço "entre" uma posição e outra, em que as relações entre o contexto e o texto se fazem estreitas e só podem ser compreendidos pela instância da ironia e da paródia, relacionadas aos acontecimentos exteriores em pleno fin-de-siècle.

BIBLIOGRAFIA
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