Saturday, February 17, 2007

Do Dandismo ao Socialismo


DO DANDISMO AO SOCIALISMO

Rosângela Manhas MANTOLVANI (UNESP - ASSIS)
Este trabalho foi aprentado como conclusivo de Literatura Portuguesa
à disciplina da profa. dra. Rosane Gazola Alves Feitosa em 2002.

No final do século XIX, o contraste entre o norte de Portugal e a França é retratado por Eça de Queirós, expoente do Realismo lusitano, na obra A Cidade e as Serras, focalizando a relação amistosa entre um milionário francês, de origem portuguesa, Jacinto, e um português de Tormes, Zé Fernandes, o narrador irônico, personagem vez ou outra, principal.
Nascido em Tormes, Portugal, o avô e o pai do protagonista, ainda criança, transferiram-se para Paris, onde nasce o Jacinto da obra. O personagem de Eça é o terceiro de uma linhagem de Jacintos. Este, vindo a este mundo como Príncipe da Grã-Ventura, no 202 do Champs-Elisée, educado em Escolas Francesas e universidades como a Sorbonne, senhor de um gosto requintado, apaixonado pela tecnologia e civilização surgidas na mudança do século, dotado de um extremo senso de originalidade, é um perfeito dandy. Suas leituras demonstram uma preferência por Balzac, Musset e, num momento posterior, Schopenhauer. Sua vida reduz-se a uma fórmula algébrica, espécie de ironia do mecanicismo da vida humana nas grandes cidades da Europa: Suma Ciência x Suma Potência = Suma Felicidade, que ficou conhecida como “Equação Metafísica do Jacinto” de Odeon à Sorbonne.
Segundo José Castelo Branco Chaves 1 em sua análise da obra, o esforço estrénuo de Jacinto para conformar apertadamente a organização da sua vida à fórmula algébrica(...) dispondo erradamente, ou descurando, certas componentes essenciais da existência humana, pouco a pouco se transforma num martírio- que causa confusão e acaba em derrocada.
A obra de Eça surge como uma sátira à tecnologia, ridicularizando o excesso de maquinismo promovido pela Civilização na cidade de Paris, capital da inovação do mundo Ocidental naquele contexto. O grande avanço tecnológico da Cidade opõe-se ao primitivismo das Serras de Tormes, em Portugal, marcado na época pelo predomínio da atividade agro-pecuária e pelos processos artesanais de produção.
Na promoção dessa polêmica, Jacinto, que possui propriedades rurais em Tormes, vive em Paris, onde procura integrar-se ao cosmo financeiro e industrial, cercado por toda tecnologia de ponta disponível na época, utilizando, inclusive invenções com funcionalidade questionável no interior do 202, um mundo particular e original. O mundo singular de Jacinto, o Príncipe da Grã-Ventura, estabelece uma analogia com o do duque Jean des Esseintes, personagem da obra A Rebours ,de Huysmans2, em sua casa bem singular de Fontenay-aux-Roses, segundo procurou mostrar José Castelo Chaves3 quando declara que:
O requinte sofisticadíssimo da tebaida do anti-herói de Huysmans inspirou certamente a acumulação de instrumentos da hipercivilização parisiense no primeiro refúgio do 202 nos Campos Elíseos.
Des Esseintes é um dandy que, horrorizado à Civilização busca esconderijo em seu castelo de excentricidades. Jacinto, em oposição, convive com esta a ponto de enojar-se
.

Construído pelo olhar de Zé Fernandes, Jacinto tem a seu dispor, um manicuro exclusivo, bem como um elevador mecânico para transportar seus alimentos, além de todo luxo redundante, quase assustador de águas: oxigenadas, carbonatadas, fosfatadas, esterilizadas, de sais (...) e aparelhos mecânicos diversos, como telefone, gramofone, um telégrafo particular, entre outros. Estes e outros detalhes que o narrador traça sobre seu comportamento o estruturam como um dandy, que oferece festas como la soirée rosé.

Ora homodiegético, ora auto-diegético, Zé Fernandes é o narrador com profundo sendo de humor, que, em alguns momentos parece ter a pretensão de manipular com as escolhas da personagem principal. Seu discurso tem uma importante significância no cenário contemporâneo do século XXI, no sentido que vai de encontro aos anseios da grande massa de ecologistas que passeiam suas verdes bandeiras pelas ruas das capitais européias. Defensor do verde e da Natureza, Zé Fernandes faz apologia das grandes árvores e de todo cenário natural do Norte de Portugal, no qual acredita que deva inserir-se o homem para que tenha uma vida mais saudável e humanitária, em detrimento dos hábitos estressantes da grande cidade.
A estrutura da obra pode ser percebida como a representação, no material escrito, da distância que separa os objetos de sua antítese: a primeira parte refere-se quase que exclusivamente à Cidade, enquanto a segunda, às Serras. Há, entre elas, uma pequena fase intermediária destinada ao conflito interior e posterior conscientização do protagonista sobre seus profundos anseios. Há que se observar, no entanto, que a decisão de Jacinto em permanecer nas Serras está relacionada aos apelos do id humano4: alimentação natural, trabalho físico, tranqüilidade, acasalamento, reprodução, convívio com a natureza. É neste ponto que reside a atualidade da obra de Eça: o homem da cidade afasta-se de sua agitação, poluição e superficialidade das relações para buscar relações mais humanitárias, a nível físico e interpessoal.
Sobre essas relações, Baudelaire5 já se pronunciava em Fusées Suggestions, em que se perguntava:

(...) Que l’ homme enlace sa dupe sur le boulevard , au perce as proie dans des forêts inconnues, n’est-il pas l’homme éternel, c’est-à-dire l’animal de proie le plus parfait?

Parece bastante evidente que Eça de Queirós pretendeu estabelecer um confronto entre dois tipos de civilização, ao mesmo tempo em que exaltou dois princípios filosóficos, segundo a visão de José Castelo B.C. o epicurismo, exercido pelos tipos sociais na cidade-Luz, e o estoicismo, praticado na Serra. Para este crítico, Eça teria trabalhado numa relação analógica com a Ascenção às Colinas, através das quais Jacinto se espirutualizaria a cada ascenção que fizesse. Assim, alude aos discursos filosóficos atribuindo-lhes o clichê de Sermões.
Uma curiosa técnica pode ser percebida nos discursos de Zé Fernandes: ele se utiliza das ocorrências narradas a respeito da Cidade para criticar o provincianismo de idéias e o atraso das mentalidades, conquanto no ato de narrar sobre as Serras, critica o superficialismo das convenções e das normas da Civilização.
Sua crítica recai sobre algumas instituições, provavelmente responsáveis pelo atraso tecnológico de Portugal, especialmente os resquícios religiosos ainda recorrentes da Idade Média. Para tecer essa crítica, utiliza-se da voz de Jacinto, personagem-símbolo da ciência : (...) A religião! A religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror (...) (p.19).

O papel exercido pelo narrador nessa obra de Eça é muito interessante pois, em muitos momentos, este desloca a cena unicamente para si, como se observa no capítulo XVI, quando este parte para Paris e passeia por todo universo jacíntico, incluindo o 202. Nessa oportunidade, exerce, através da voz da personagem Conde de Marizac, uma crítica ainda mais severa a alguns aspectos da Cidade Luz, bem como a seus tipos:
(...) Dornan, o poeta, a obscenidade, a preciosidade dos versos (...); o Psicólogo, com suas feminices a três francos e cinqüenta (...).
Paris causava uma estranha sensação de monotonia, por causa dos fatos e idéias repetitivas, na mediocridade discreta e ordeira (...); Os casais, todos da mesma cor pardacenta (...)
(p.181).
(...) me cansava o [Paris] perceber a tenaz incessância do trabalho latente, a devorante canseira do lucro (...) entre a indiferença e a pressa da Cidade.
Critica o visual da cidade: as magras árvores, as grossas tabuletas, os imensos chapéus emplumados sobre tranças pintadas de amarelo, e os garotos oferecendo baralhos de cartas obscenas, caixas de fósforos obscenas
. (p.181).
Imagens estas que o narrador procura associar ao som: aquele estridente rolar da cidade, numa tentativa de filmar Paris na imaginação do leitor. Tece observações sobre as imagens promovidas pela mídia:

A mesa do quiosque(...) alastrada de jornais ilustrados – e em todos se repetia a mesma mulher, sempre nua (...) ora mostrando as costelas magras, de gata faminta, ora voltando para o leitor duas tremendas nádegas. Assim, busca analisar o jornal: (...) abri a Voz de Paris (...) na primeira coluna (...) uma princesa nua e um Capitão de Dragões(...) as outras colunas contavam feitos de cocottes (...). Na outra página escritores celebravam vinhos digestivos e tônicos (...), os crimes de costume (...) nada de novo! (p.182).

Ironiza, ainda, a polidez da civilização, mostrando como a comida era cara e o dinheiro falso circulava entre as notas oficiais.
No sonho, como representando um verdadeiro pesadelo da Civilização, esta invade a Serra:

(...) sonhei que em Tormes se construíra uma Torre Eiffel e que em volta dela as Senhoras da Serra, as mais respeitáveis, a própria tia Albergaria, dançavam nuas, agitando no ar saca-rolhas imensos. (p.181).

É nesse contexto de sonho que a sátira se estabelece. Essa cena resultaria uma bela tela surrealista.
Critica o contexto social, imprimindo uma linguagem depreciativa e vulgar:

Dois impulsos únicos correspondendo a duas funções únicas, parecia estarem vivos naquela multidão: o lucro e o gozo. Os dois apetites da cidade – encher a bolsa, saciar a carne! (...). Fala dos perigos da cidade: (...) de cada ponto parecia sair um ardil para me roubar(...) supeitava um bandido em manobra; (...) as mulheres (...) só podridão por dentro. (p.183)

Analisa as formas da multidão, na sua pressa, nas atitudes, de forma pejorativa.
Nas serras, seu discurso enfatizava o belo, a Natureza e sua construção privilegiada, como uma espécie de louvor:

Com que brilho e inspiração a compusera o divino Artista que fez as serras e que tanto as cuidou e tão ricamente as dotou neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça (...). Dos pendores sobranceiros ao carreiro fogoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável (...) (p. 106).

A linguagem utilizada para descrever e vivificar as serra é absolutamente poética, repleta de construções inusitadas. Em muitos momentos da narrativa é possível observar uma intersecção entre cenário, fato, linguagem.
A antítese geográfica e social reflete-se no comportamento da personagem, revelando dois aspectos diferenciados do seu eu: em Paris, Jacinto assume a excentricidade e o refinamento dos gostos e maneiras na figura do dandy; em Tormes, o interesse pelo trabalho e produção, pelos humildes e suas vidas na figura do fidalgo humanistarista.
A dialética estabelecida no contexto espelha a contradição interior do mesmo homem. Os espaços, assim, aparecem como reflexos de duas perspectivas internas do protagonista: o místico, natural, atrelado à terra e às atividades do setor primário, influenciado por leituras clássicas e funcionais; e, o outro: o superficial, o produzido pelas normas e etiquetas, ligado ao mundo financeiro e artístico, cercado de ciência e novas filosofias.
A obra A cidade e as Serras implica um retorno do homem às origens, uma espécie de caminho inverso àquele priorizado no contexto da época, cujo percurso seguia em direção à Cidade. Os países europeus importavam de Paris desde idéias até soutiens.
Reformando a casa dos trabalhadores de suas propriedades, bem como suas condições materiais de vida, Jacinto tem atitudes incompreensíveis aos habitantes de Tormes. Interrogado por Tia Albergaria sobre seu procedimento, Jacinto justifica seu comportamento, revelando: (...) sou socialista.

Dandy ou socialista? Conhecido por suas tendências socialistas, Eça de Queirós faz transparecer sua marca pessoal na construção da personagem Jacinto, que se mescla a outras marcas, num jogo dialético sob o qual se organiza essa obra que nos apresenta discursos nos quais a ideologia estabelece jogos de forças absolutamente atuais e discute, no sub--nível questões como socialismo, capitalismo, hipercivilização, ecologia e, especialmente, o homem.

RESUMO:

DO DANDISMO AO SOCIALISMO trata de uma abordagem à obra A cidade e as Serras, de Eça de Queirós, enfatizando a crítica que Eça desenvolve sobre a hipercivilização e as relações que os homens mantém dentro dela, bem como aquelas que representam seu ponto de oposição, ou seja, o espaço das relações primeiras, as Serras. É nessa relação dialética que o narrador da obra constrói implicitamente, discursos que remetem tanto à estética decadentista do final do século quanto ao socialismo, doutrina econômico-política-social, surgida pouco tempo antes. Nesse contexto estético, filosófico e ideológico passeiam as figuras do Príncipe da Grã-Ventura, Jacinto e seu amigo português, Zé Fernandes.

PALAVRAS-CHAVE: Espaço; Civilização; Dialética; Comportamento; Ideologia.

BIBLIOGRAFIA

CANDIDO, Antônio.“Entre campo e cidade”. In: Tese e Antítese. 3ª ed. São Paulo: Nacional, 1978, (p. 31-56).

CHAVES, José Castelo Branco. A cidade e as serras. In: Suplemento ao dicionário de Eça de Queirós .(org. e coord. de Matos A Campos). Lisboa: Caminho, 2000, (p. 91-100)

COELHO, Jacinto do Prado A . A letra e o leitor. Lisboa: Portugalia, 1981, (p.169-174).

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através de textos. 25ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997, (p. 361-7).

1 (apud.) MATOS, A. Campos. (org. e coord.). Suplementos ao dicionário de Eça de Queirós. Lisboa: Caminho, 2000.
2 Huysmans, J. A Rebours, Paris
3 (apud. id.ibid.),2000, p.100

5 BAUDELAIRE, J.J.. Le Fleurs de Mal. Paris: (...)